Açucena

Açucena

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Uma morte anunciada (Mary Ibanhes)


Lá no banhado quase seco
Lodaçal escuro
Preconizava abismos
Todos os desertos abraçavam
A esperança da noite
E secavam os sonhos
Até os cactos pareciam
Secar
Urubu tinha aberto as asas
Na cumeeira 
E um bem-te-vi
Cantava insistente
Bem-te-vi, bem-te-vi!
Na noite anterior
A coruja piou
Fazendo agourenta seresta
Ventos atravessavam as portas
Escancaradas da casa amarela
Rodopiavam
Cambalhoteavam  
Cortavam o arrebol
Os bichos se recolhiam
Em estranho silêncio de fome
Todo aquele laranja crepuscular
Se fundia com o avermelhado
Que manchava o chão
Quente como fogo
Terra molhada
De sangue
Nunca mais o aboio do vaqueiro
Nunca mais seus olhos
Veriam a alva manhã
Nem mirariam a lua
Nem o infinito sertão
Nem buscariam no tempo
Advinhas pra chuva
No céu, chegaria
Um anjo justiceiro
“E tudo que escrevi 
Nunca será o que quero dizer”


domingo, 2 de novembro de 2014

Voo dos anjos (Maria G. de Ibanhes)


Quando um anjo voa
Buscando o azul do firmamento
As palavras somem
Fica a dor
Latente
Inominável
Inexorável
Imensurável
Dilacerante
E as interrogações
Não pronunciadas
O silêncio é bálsamo
Mas a tristeza soa
À revelia das palavras não ditas
E é quase palpável
Talvez, uma única resposta:
Anjos não se adaptam
A essa terra devastada
Voam em busca de luz
Oremos!




quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Surreal Sertanejo (By Mary Ibanhes)


Em meio ao areial solto
Nas ” ilimitades”  amarelo-rubras do sertão
Há, em minha alma, lampejos corados
De futuros mais-que-perfeitos
E solidões outonais
Onde o passado tem punhais
De mandacarus amortecidos pelo tempo
Descorados e brandos...
Só o cheiro da terra molhada de chuva, o desenho de amor infinito
Que fito em teus olhos
Fazem minha alma brotar e transladar
Aqueles futuros mais-que-perfeitos para o futuro imediato
Porque mais que chuva, eles trazem
Verdes e plantações e farturas
De amor, de lírios do campo, de milharais
E formosuras comestíveis
Alegrias caprinas, bovinas e passarinhescas
Eu e tu, no sertão sem seca
Nessa hora, todos os deuses rezam
Enquanto eu e tu descansamos embaixo de frondoso umbuzeiral...

sábado, 14 de junho de 2014

Noite negra (By Mary Ibanhes


Noite terrível!
No silêncio das ermas horas
Um tic-tac de coração estrondava
Os vazios da caatinga
O pensamento via miragens estéreis
De  amores violados
Como a terra devastada
Nada havia para assegurar a paz
O canto da coruja era místico
E preconizador
Da transformação da angústia em dor
E a doçura daquele coração
Petrificava em medo
A voz do vento
Cortando os espinhos do mandacaru
Sibilava segredos distantes e medonhos
Nem os grilos cantavam
Embaixo das touceiras de facheiro
Nem lua havia para jogar
Um rasgo de luz
Que iluminasse o verde daquele olhar
Feroz, triste, morto
Ou mostrasse outra cor
Além do negrume da noite
Do “assum preto” e daquela
Alma cega como o pássaro
Que diferente dele não sabia cantar
Mas urrava dilacerada
Por uma “verdade” presumida
E seus urros açoitavam o tempo
Nem a chuva torrencial poderia
Lavar tanto desassossego
E alegrar os traços
Daquela face desesperada
Mas um assobio da consciência
Lembrou-lhe de quem ela era
Da terra de onde viera
E da força monumental
Que sempre a salvou
Filha da terra seca
Filha da luz do sol
Estrela ressuscitável
O amanhã nasceria
E ela colheria horizontes
Teceria enluaradas fantasias

quinta-feira, 5 de junho de 2014

“Pra não dizer que não falei das caçimbas” (By Mary Ibanhes)


De vivos, só há  
Eu e aquela caçimba
No meio daquele rio sem fim
Seco, arenoso e  morto
O resto são ossadas de bichos
E no infinito, nenhuma promessa
O excesso de luz promete  trevas
A  água da caçimba é salobra
De verde, só existem meus olhos
E  minha esperança
De seguir  “rio abaixo”
E  encontrar o mar
Mas o mar não é solução
Que dissolve angústias de sertanejo
No coração aquele aperto
De quem  sabe que o fim virá
Mas do fundo da alma
Nasce  uma oração
 E se não é miragem
Fotografada pelo meu olhar
 Miro uma revoada de asas brancas
Voltando para o sertão
Talvez a chuva venha
E minhas lágrimas também
Molhando as securas da terra e dos amores perdidos.

sábado, 24 de maio de 2014

Um blues no deserto (By: Mary Ibanhes)


Em mim, o deserto
Todos os desertos
Sem  previsão de chuva
De palavras soltas, muito menos de poemas!
Talvez chuvisque palavras cactos
Espinhosas e sem delicadeza
E no meio das dunas
Surjam  versos  de dor
Poesia também se faz com
Almas e corações esfacelados
Entre uma rima e outra
Sempre nasce uma flor.
E o vento arenoso
Sopra um blues manhoso
A chorar o amor
Que não posso ter.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Advertência poética (by Mary Ibanhes)



O que escrevo não se escreve
É só canto pra ninar
Passarinho
É só música pra borboleta
Dançar
É só verso pra amainar
A seca
É só dança pra nuvem
Chover  
É só história de trancoso pra calango
Dormir
É só prosa pra vaqueiro
Sonhar
O que escrevo não tem licença de
Verdade
O que escrevo não traduz
Sentimentos
O que escrevo tem parentesco
Com sonhos e paisagens
E é só! 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

História de Maria pescadora (By Mary Ibanhes)


Era nas barrancas dos rios
Que ela pescava sonhos
Cada peixe cintilava uma promessa
Daquele mundo intuído
Em pensamentos voadores
A solidão era sopro de vento
E pássaros cantando nas copas das árvores
Ela murmurava pra outra
No espelho d’água:
Minha vida é pescar, pescar, pescar
E a outra de si
Repetia: pescar, pescar, pescar
Num eco que descia a correnteza
Até alcançar o mar..
Se eu fosse um peixe, pensava
Chegaria ao mundo de lá...
Mas, um dia, Maria se encanta com livros
E, pescando palavras, descobre
Todos os mundos que há...


domingo, 27 de abril de 2014

Uma flâneur no deserto (By Mary Ibanhes)


Vago entre desérticos lugares
As ruas estão vazias
E minha alma também
Escuto o tique-taque de um relógio
Distante
E nas passarelas da memória
Desfilam você e eu em tempos remotos
E nossos risos parecem felizes
Mas o tempo amarela tudo
Logo, não posso ter certeza
Se tivesse, talvez, ela fosse fatal
E destruísse minha vontade de seguir adiante
Se apenas por um segundo eu te encontrasse
Tentaria sequestrar  de ti alguma verdade
Mas tudo é ermo por essas paragens
E, se te busco na fria rede,
Há tantas imagens congeladas e nenhum amor
Há um deserto perpetuado ali também
Onde pratico a flânerie e termino
Por encontrar as “flores do mal”
E nenhum resquício de algo
Que cesse essa minha deambulação.
Esquecida  nas ruas ou na rede
Onde, se houver  multidão,
Minha solidão triplica de tamanho
Eu perambulo na noite escura
E não há lua, nem efeito alucinógeno
Que maquie a tua ausência
E venhas como um Baudelaire
E num delírio, eu deixe em teus lábios os meus.
No espaço restrito da cidade ou no espaço irrestrito da rede
Errante eu continuo
Perdida nesse rizoma
Onde  uma infinidade de angústias me devora
E a ciber-multidão só aumenta o deserto desse território
Mais solitário do que as ruas que atravessei
Vestida de fantasma. Sou só - eu e minha vontade de existir.


Rosa suave (By: Mary Ibanhes)


Há horas que a vida me dói
Me estraçalha
E eu sigo despedaçada
Mas com uma enorme vontade
De pegar meus cacos e vira-los  flor
Sou aquela que resiste aos desertos
Na secura dos mares – torrões que um dia viram água
Me  deslimito com as verdades
E sonho com estrelas cadentes
Me enveredo pelas travessias da via láctea
Onde sou fada e rainha
De lá volto, transformando as terras devastadas em oásis
E me recrio mesmo que seja em flores desérticas
Cactos também dão rosas suaves.




quinta-feira, 3 de abril de 2014

A lua e o vaqueiro (A Elomar Figueira) (By Mary Ibanhes)

Oh,  lua  cheia
Alumia todo o sertão
É tão grande o teu clarão
Põe  foco na viola
E nos grilos que fazem seresta
E acompanham o tocador
Dedilhando nas cordas
Canção que chora
Saudade do amor que foi
E não voltou...
Oh,  lua afaga a face do vaqueiro
Olhar perdido no terreiro
Cantando a sua dor.
O seu “canto é de incelença”
Lua,  renova sua crença
Na volta daquele  amor
Não vês
No rosto alumiado
Tantas gotas de orvalho
Desmontando o cantador?
Vai,  luar, consola
Traz perfume de esperança
Ventos de amor e dança
Seca com tua luz
A tristeza molhada
De olhar tão infeliz.

sábado, 15 de março de 2014

Retrato de um sertanejo (Maria Ibanhes) (Ao meu irmão, Francisco de Assis)


A brisa morna soprava-lhe o rosto carinhosamente
Enquanto ele olhava a caatinga com olhos chuvosos
Se chovesse podia plantar milho, feijão, jerimum, melancia
E ver as criações saltitantes
Agora elas vêm famintas, tocando seus chocalhos
Tristemente.
Ele joga as vagens de algaroba e bodes e cabras
Comem freneticamente.
Para as galinhas joga milho pro outro lado do terreiro
Seus olhos alcançam a imensidão azul
Se chovesse o sertão ficaria mais bonito
O toque dos chocalhos é quase uma canção
Ele coça a cabeça embaixo do chapéu de couro
Tudo é árido e pedregoso, como a vida
Mas existe o verde do mandacaru e da catingueira
Com suas flores amarelas para amenizar
A dureza da pedra. A vida também é assim.
Seus olhos sorriem, a gente tem que lutar
E ter fé – a esperança também é verde
E se em seus pesadelos mais terríveis o sertão
Derretia – formando imagens disformes das cabras
Das vacas e dos galináceos e dele próprio
Como os relógios de Dali
Da li, de onde estava, sentado no batente de pedra
O sonho era outro, chovia e tudo era fartura
E beleza – O sertão não sai de nós
E sertanejo não chora. Passou a mão pelos olhos.
Seus olhos alcançam o infinito
E ele confundia-se com tudo aquilo
Terra, pedras, criações, cactos, caatinga – Sertão!
Ele é o sertão!

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Um canto de saudade (Maria Ibanhes)


Hoje meu canto é de saudade
Lembro a felicidade
Que você dá pra mim
Olho as estrelas errantes
O luar atrás dos montes
Ouço o som de um bandolim
Terra seca no escuro da noite
Clama chuva e o vento é açoite
Como a terra eu chamo por ti
Canta triste a coruja e parece sentir
A tristeza que brota espinhando
Minha alma cortando
De esperar por ti
O meu corpo de pedras revesti
Inútil artifício! Meu coração canta aboio
De vaqueiro, é o mugido das reis
Com fome, chamando por ti
Que caminhas em terras ciganas
E os dias todos adiáveis
Prolongam a espera
Esquecem a primavera
E você, tal chuva no sertão
Parece não querer  vir
Meu pranto molha a tatarena
E se a rima é feia para o sertão, então
Mais que ligeiro ela há de florir
Aí a rima se ajeita, você chega e volto a sorrir...


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Flor de mandacaru (Maria Ibanhes)



Minhas palavras tantas vezes punhal
Ferem minha própria carne
Sou planta espinhosa  -  minha folhagem
Virou espinho,  mas no escuro da noite
Lanço sementes de  flores  pelo caminho
E dentro de mim mora um oásis
Diante do teu olhar, minha aridez se transforma:
Sou veludo, sou  pluma, sou  pétala
Sou asas serenas no azul do céu
E um rio inteiro me rega a alma
Porém, não posso me livrar de minha couraça
Meus espinhos-punhais me mantêm a vida
E só você conhece o meu segredo
E só você me livra do medo
E só pra você me desnudo dos espinhos
E só pra você, sou asa branca - sou passarinho
E só pra você, alastro a terra de flores brancas.






terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Desafio (By Maria Ibanhes)


Eu escrevo mesmo
É pra fugir desse DESLOCAMENTO todo!
Os espinhos dos cactos são mais atraentes
Do que certas roseiras esquálidas que cruzam o meu caminho.
Tenho coceiras delas! Eu – fora de loco total!
Meu pensamento alcança longas distâncias...
E eu sinto: o cheiro de minha terra, o calor
E as boiadas barulhentas, tocando seus chocalhos
O toque do chocalho é uma canção
Acompanhando o aboio do vaqueiro
Ela evoca  mitos do sertão
Lampião risca peixeira na pedra
E Corisco apanha relâmpago e abraça trovão
Maria costura estrelas num certo gibão
Enquanto “aquela” pesca o peixe que é dado na mão
E a outra Maria fia uma história
Com fios de sangue do seu coração
Tão inadequada! Por que não faz uma oração?
Eu prefiro retirar a rima e convidar as Marias
Pra, num desafio, dançar um xaxado no meio do sertão
Quero ver quem ganha o bailado, quem toca o roçado
Quem ama com tanta emoção...
Quem chama um “repente” e empresta luz para a CRIAÇÃO.




domingo, 9 de fevereiro de 2014

Flor Caatingueira (By Maria Ibanhes)


Ah, que atroz audácia!
Eu que tive de desentranhar
Da terra minhas raízes...
Prefiro a coroa de frade – flor espinhosa
Àquelas flores doentias:
Pálidas, desperfumadas, estéreis
Foi do deserto que extrai meu sumo
E foi lá, in loco, que rabisquei
Meus primeiros escritos, às vezes,  roubados!
Talvez meus versos destoem do resto do mundo
Sou inadequada para todas as insensibilidades
Talvez eles gritem impropérios
E soem secos tórridos tristes
Mas quando eles encontram eco
Nasce um oásis – chove
Na terra seca e devastada.
E eles assoviam para a “Asa branca” e acompanham a “Romaria”
O inverno pode chegar.
Agora, “escrevo em exílio, sem literatura.”
Mas a memória rastela todos os signos
E a luz vem e o dia raia um poema.
Quem disse que no deserto não se colhe flores?





sábado, 25 de janeiro de 2014

Aromas frutais (By Maria Ibanhes)



Minha história é feita
De pedras, espinhos e calor
Mas tem brisas por meus caminhos
Aromas de frutas e de flor.
Tem o colorido agreste
Da flora do meu nordeste
E os vários tons carmesins

As frutas e suas cores
Seus variados sabores
Me lembram um tempo alegre
Arrepiam minha epiderme
Com aqueles gostos molhados

A matutina melancia
Era a nossa alegria
Depois que a gente comia
Brincava o resto do dia
Com as esculturas de casca
Talhadas por nosso pai

A manga então, amarela
Verde ou vermelha
Açucarada ou travosa
Escorria pescoço à fora
Derretida a carne-cetim
E eu pintada de manga
Derramada de caldo
Nada tinha de metafórica
Era a lógica
Da menina anjo-querubim

E a cana-de-açúcar?
Fruta magra
Parece carcaça
Mas é cheia de água
Doce como o mel
E  antes de ser chupada
Virava rosa de rodelas
Em  talos de bambu fincada

Ah que doçura de infância!
Tudo era luminância
Até fruta era brinquedo
A vida não tinha segredo
Brincávamos de “jogos frutais”
E tinha caju carambola
Mangaba e graviola
Pitomba e maracujá
Seriguela e também cajá


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Imagens do Sertão (By Maria Ibanhes)


O silêncio é uma pedra
Onde o calango escorrega
Olhando a flor amarela
Da catingueira verdinha
Que nos serve de sombrinha
Para o calor aplacar...

E o Sertão andaluz
Ilumina o que produz
Em facheiros, mandacarus
E selvagens lastrados de espinhos
Ilumina também os bichinhos
Com seus chocalhos a tocar
A vaca mocha a berrar
Fazem uma sinfonia
E barulhentos acordam o dia
Para a vida começar...

Quando o dia amanhece
Os olhos do sertanejo
Parece que rezam uma prece
E alcançam o pasto inteirinho
Vêem as algarobas e palmas
E os animais no caminho...

Tudo é luz e sol
Ampliando as rimas
Quentes das pedras
A urdir versos sem métricas
Ferindo a face da terra
Do homem e de qualquer deus...

Um cajueiro é um oásis em festa
Com a carnação dos seus frutos
Todo cercado de arbustos
Vigiado por avelós  
Faz o vaqueiro
Trigueiro
Aguar os lábios brejeiros
Com sua mordida veloz

Aqui tudo é quente
Não tem filosofia de kant
Ou de qualquer outro filosofo
Que explique o que é nosso
Nesses currais do sem fim
E quem pensa que somos só fome
Esquece a teima do homem
Nesse sertão carmesim

E como disse o  Santana:

“O que eu queria era ver:”
A metafísica de um bacana
Explicar a essência
Que emana
Do homem que vive aqui
Porque quem que disse
Que só temos fome e carência
Esquece que nossa essência
Só do sertão pode vir

É com a mesma teima
Da macambira e dos cactos
Que o sertanejo verseja
Não obedece, mas veja
Ele é o filósofo daqui.