Açucena

Açucena

terça-feira, 17 de março de 2015

Diálogo com Bukowski Maria G. Ibanhes


Preciso tomar um banho
Para ir ao trabalho
Mas Bukowski não deixa
Me aconselha a pegar
A high way
E depois, as veredas do sertão
Enfrentar os pedregulhos
E arrancar poesia
Das pedras, da terra rachada
Dos espinhos, dos rios secos
Bukowski me disse
Larga mão do job
E vai sonhar com pássaros
E eu, imediatamente
Pensei no galo de campina
E no cancão preso
Na gaiola de minha amiga de infância
Pensei no viveiro de pássaros
Do pai de uma outra amiga
Cheio de canários
E barulho dos mais variados cantos
E as calopsitas da minha mãe?
Andam pela casa em pacífico convívio
Com o gato
“Um gato que não mata pássaro”
Ausência de dor!
A dor chegou de outra forma
Bang!
E atingiu minha alma
E isso é real!
E Bukowski continuou me instigando
A fazer poesia do dia-a-dia
Da minha bio-grafia
Tão sem poesia
Cheia de dor
Fazer fábulas poéticas
E delirantes do meu cotidiano
E eu lhe disse:
Meu único delírio é meu amor
É o amor pelos meus
E isso também causa dor
Porque a dor deles
É também a minha
Perpassa minha escritura
À revelia da minha vontade
Mas essa escritura doente
Dolorida, enferma
Me salva da loucura
Da morte!
Não uso entorpecentes
Nem tenho talento para ser bêbada
Nem vou à casa de Deus
Para aguentar a vida
Deus onipresente
Mergulhou no meu inconsciente
E lá ficou
Não preciso de igreja
Por isso.
Mas não posso largar o job
Não sei morrer de fome
E poesia não compra pão
Compra lua
E imaginação
E afronta o SISTEMA
Afrontar é meu forte
Eu faço poesia no drible
E mando os caretas se foderem!
Bukowski vibrou e disse:
“O poeta nada pode sem sofrimento”
Eis a nossa maldição, pensei eu
Me incluindo entre os poetas
Eu, tão aprendiz!
Mas sabia que a fonte poética
Estava em meu quintal
No meu meio do sertão
E no que a vida me fez.
Entre calangos e pássaros
E nas estórias
Que nunca contei.


terça-feira, 10 de março de 2015

A cabra (Maria G. Ibanhes)


De poeira e vento
Era aquela tarde crepuscular
E eu seca e faminta
Remoía com gosto
Aquelas últimas vagens de algaroba
Meu olhar caprino
Era triste e agourento
Prévia meu fim
Como o das minhas irmãs
Que morreram esqueléticas de fome
Seus ossos espalhados
Pelos terreiros ou na beira do açude vazio
Terra rachada!
Devastada como o olhar de sinhá
Que eu sei
Pensa me fazer alimento
Aquelas rugas na testa e os olhos franzidos
Rugas forjadas pela seca
Mais do que pelo tempo
Mostravam seu pensamento
Se eu ainda me arrastava
Por entre a caatinga
Devia isso ao pequeno
Que me dedicava amor
E a quem alimentei com meu leite
Mas agora minhas tetas
Saquinhas murchas
Nada tinha a ofertar
E a família tinha fome
A caça estava escassa
O pai, vez ou outra, achava um preá
Um teju, um tatu
Mas os bichos estavam fugindo
Pro oco da terra
E os homens, cada vez mais, ocos de fome
Ai de mim! Ai deles, ai de nós!
Que eu não me adentre ao reino da morte!
Os olhos fundos dos meus donos
Têm a fundura das cacimbas
E o salobre da água restante
Talvez, eles tenham encontrado
Em sonho, olhos laminados
De sol e desespero
No reino de sonho da morte
Lá, os mandacarus brandem espinhos
E as aves despenam suas asas
O vento é lânguido
E não aplaca o calor
E os rostos das gentes
São pálidos e ossudos
E dos seus olhos
Límpidas lágrimas fulgem
Misturam-se ao fogo
Que brota da terra
Eu não queria morrer
Mas aquele foi meu último entardecer
Eu fui, cedinho, me embrenhando
No campo de nuvens
Sentindo a mão do pequeno me acariciar
O sol começava brilhar
E eu sentia gotas mornas
Me aguar
Eram as lágrimas do pequeno
Último alento
Acalanto
Para o meu caminhar
Depois, tudo era verde
E eu pastava feliz
E ainda podia sentir as carícias do pequeno.