Açucena

Açucena

terça-feira, 10 de março de 2015

A cabra (Maria G. Ibanhes)


De poeira e vento
Era aquela tarde crepuscular
E eu seca e faminta
Remoía com gosto
Aquelas últimas vagens de algaroba
Meu olhar caprino
Era triste e agourento
Prévia meu fim
Como o das minhas irmãs
Que morreram esqueléticas de fome
Seus ossos espalhados
Pelos terreiros ou na beira do açude vazio
Terra rachada!
Devastada como o olhar de sinhá
Que eu sei
Pensa me fazer alimento
Aquelas rugas na testa e os olhos franzidos
Rugas forjadas pela seca
Mais do que pelo tempo
Mostravam seu pensamento
Se eu ainda me arrastava
Por entre a caatinga
Devia isso ao pequeno
Que me dedicava amor
E a quem alimentei com meu leite
Mas agora minhas tetas
Saquinhas murchas
Nada tinha a ofertar
E a família tinha fome
A caça estava escassa
O pai, vez ou outra, achava um preá
Um teju, um tatu
Mas os bichos estavam fugindo
Pro oco da terra
E os homens, cada vez mais, ocos de fome
Ai de mim! Ai deles, ai de nós!
Que eu não me adentre ao reino da morte!
Os olhos fundos dos meus donos
Têm a fundura das cacimbas
E o salobre da água restante
Talvez, eles tenham encontrado
Em sonho, olhos laminados
De sol e desespero
No reino de sonho da morte
Lá, os mandacarus brandem espinhos
E as aves despenam suas asas
O vento é lânguido
E não aplaca o calor
E os rostos das gentes
São pálidos e ossudos
E dos seus olhos
Límpidas lágrimas fulgem
Misturam-se ao fogo
Que brota da terra
Eu não queria morrer
Mas aquele foi meu último entardecer
Eu fui, cedinho, me embrenhando
No campo de nuvens
Sentindo a mão do pequeno me acariciar
O sol começava brilhar
E eu sentia gotas mornas
Me aguar
Eram as lágrimas do pequeno
Último alento
Acalanto
Para o meu caminhar
Depois, tudo era verde
E eu pastava feliz
E ainda podia sentir as carícias do pequeno.



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